- Michael? - balbuciei.
Michael era o manager da minha antiga banda, as Sweet Sorrow. Ele sempre foi como um pai para mim. Quando estávamos em digressão ou assim, ele cuidava de mim e dos outros elementos da banda, como se fôssemos filhas dele. Estava sempre do nosso lado. Protegia-nos, apoiáva-nos, suportáva-nos. Esperava ver toda a gente menos o Mike (Michael).
- Que fazes aqui? - perguntei.
Michael veio sentar-se do meu lado, fazendo com que eu ficasse debaixo do seu guarda-chuva.
- Mundo da música. Sabes como é. Fui convidado para ser manager de uma nova banda alemã.
- Parabéns.
- Obrigado.
Instalou-se o silêncio.
- E tu, que fazes aqui?
- Foi...eu...quer dizer, o Tom...
- O que é que o rapaz te fez?
- Ele...
- Traiu-te.
- Como sabes?
- Conheço bem a peça. E está escrito na tua testa.
- Não está escrito. São mesmo cornos, Mike.
Michael riu-se.
- Anda cá, miúda. - disse ele, pondo o seu braço à volta dos meus ombros.
Repousei a minha cabeça no seu ombro direito, sem tirar as mãos dos bolsos. Fechei os olhos.
- Nicky, não podes chorar por ele. Nem fingir que não estás a chorar, porque mesmo estando a chover, nota-se.
- Eu tentei evitar. Sabes que eu nunca chorei por nenhum rapaz. Mas ele é...é tudo.
- Eu percebo-te.
- Também aconteceu algo assim contigo?
- Comigo e com mais de meio mundo.
- Queres falar?
- Para quê remexer no passado? Agora estou bem.
- Fico feliz por ti.
- E tu, miúda? Queres falar?
- Para quê remexer no que dói? Prefiro não falar mais sobre isto. Desculpa...
- Não tens de pedir desculpa. Entendo-te perfeitamente.
- São feridas que não fecham tão facilmente, sabes?
- Sei...
Uns segundos de silêncio permaneceram. Tudo o que se ouvia eram os carros e as gotas da chuva. Passavam muito poucos carros por ali, especialmente àquela hora e com aquele tempo.
- Mesmo sem quereres falar, Nicky, não podes adiar isto. O que vais fazer?
- Não sei bem. Provavelmente, volto para Portugal.
- E deixas tudo o que tens aqui?
- Se deixei 17 anos em Portugal, porque não deixo 2 na Alemanha?
- Tens razão.
- Sabes o que mais dói? Para além da traição, eu deixei tudo o que tinha por ele. Sacrifiquei a minha vida. Tinha 17 anos de memórias, de triunfo, de sonhos, de conquistas, de felicidade. Abdiquei de tudo o que me fazia feliz, para poder estar com quem mais amo...o Tom. Acabei a banda, ou seja, desisti do meu sonho. Abandonei a minha escola, os meus amigos, a minha família inteira. Deixei tudo para trás, para agora se tornar um desperdício. A minha vida acabou de ir pelo cano abaixo. É o meu fim, Mike.
- Não. Tu ainda não morreste. O fim é a morte. Essa é a única coisa que não se resolve, não tem cura. De resto, tudo pode resolver-se.
- Se calhar a morte era a solução...
- Não! Não tenhas ideias parvas, Inês!
- Realmente, eu não me mataria por quem não merece sequer o meu respeito, quanto mais a minha vida.
- Bom, fico mais descansado. Faz assim, tenta esclarecer tudo primeiro. Depois de teres tudo inteiramente resolvido, decides se ficas ou voltas para Portugal.
- Tu ficas cá quanto tempo?
- De momento, estou a viver cá. Se quiseres voltar e não quiseres ficar com o Tom, podes vir para minha casa.
- Obrigado, Mike.
Ficámos ali mais ou menos um minuto, em silêncio.
- Nicky, quanto a ti não sei, mas eu vou voltar para casa. Devias ir também. Resolver as coisas e assim.
- Claro, eu apanho um autocarro.
Olhei para o relógio que usava.
- Daqui a meia-hora chega outro - disse eu.
- Não vais apanhar autocarro, coisa nenhuma. Eu levo-te a casa.
Levou-me de carro. Parámos em frente da casa onde eu vivia. Mike tirou da sua pasta um pequeno bloco de notas e uma caneta. Escreveu algo, arrancou a folha e deu-ma para a mão.
- Aqui tens o meu novo número de telefone e a minha morada - disse ele.
- Obrigado, Mike.
- De nada. Já sabes. Ah, e vê se resolves as coisas com calma.
- Vou tentar. Bem, vemo-nos depois. Até à próxima, Mike.
- Esperemos que não haja uma próxima vez assim. Até depois, Nicky.
Dei-lhe um beijo na cara e saí do carro.
Respirei fundo e tirei o capuz da cabeça, já coberta pelo tejadilho do alpendre. Meti a chave na porta e rodei-a. Empurrei ligeiramente a porta e esta abriu-se.
Dentro da casa, Bill e Amy estavam num estado de desespero que só visto.
- Que se passa? - perguntei.
- Que bom ver-te! - disse Amy, correndo para abraçar-me.
- Repito...o que é que se passa? - repeti eu.
- O Tom...ele ligou-me, desesperado, à tua procura. Deve andar por aí a correr tudo quanto é sítio para te encontrar! - explicou Bill.
- O quê? Como é que alguém que me trai, depois se preocupa comigo? - perguntei indignada.
- O quê? O Tom traiu-te? - perguntou Amy.
- Ele não vos disse porque é que eu saí disparada da discoteca?
- Não. Mas o que é que aconteceu mais concretamente? - perguntou Bill.
- Então...eu e o Tom discutimos pela milésima vez. Ele afastou-se, começou a dançar...às tantas começou a falar com uma rapariga, e passado pouco tempo, estavam aos beijos...à minha frente. E isso, eu não lhe vou perdoar.
Subi rapidamente as escadas, apressei-me a entrar no quarto e bati a porta. Deixei as minhas costas deslizarem e fiquei sentada no chão. Cobri a cara com as mãos. Demasiadas coisas passavam pela minha cabeça. Imagens (não só daquele dia, não só da traição, mas sim de todas as discussões e até mesmo bons momentos), memórias, conversas. Nós já tínhamos passado por muita coisa, mas aquilo era demais para mim. Uma lágrima caiu-me pelo canto do olho, deslizando pela cara e chegando à linha do maxilar.
- Não - disse eu, limpando a lágrima. - Não vais chorar de novo por ele.
Levantei-me e sentei-me na cama, com as costas apoiadas. Agarrei uma almofada e apertei-a contra o meu corpo. Observei a noite lá fora. Senti um déjà vu de algumas noites da digressão, de algumas noites juntos, de algumas noites em que chorei. Estava sempre lua cheia. Levantei-me e fechei a cortina. Não queria ter de olhar mais uma lua cheia. Deitei-me de lado e fiquei a pensar. Contive-me para não chorar de novo.
Passado um pouco, oiço a porta bater lá em baixo e a voz do Tom a falar com o Bill. Oiço passos na escada.
- Ele vem aí - pensei para mim. - É agora. Tens de enfrentar os problemas.
Tom abriu a porta do quarto e fechou-a. Tirou o casaco, o chapéu e os sapatos. Tinha toda a roupa molhada.
- Não devias bater à porta? - manifestei eu.
Não era aquilo que queria dizer. Tínhamos mais que discutir do que se ele batia à porta ou não.
- Este quarto também é meu. E em vez de implicares com o facto de eu não ter batido à porta, vamos antes falar sobre o que aconteceu.
Ele puxou uma cadeira e sentou-se à frente da cama. Elevei o meu tronco, de maneira a ficar em frente a ele. Olhei-o nos olhos e cruzei as pernas. Pus a almofada que tinha contra o meu corpo, em cima das minhas pernas. Começámos a falar, muito calmamente. Preferia falar assim do que a discutir.
- Queres falar sobre o que aconteceu? Eu digo-te o que aconteceu - respondi eu, friamente. - O que aconteceu foi que me traíste, mesmo à minha frente. Bom, antes assim do que nas minhas costas. Tipo todos saberem e eu não. Mas o que tu fizeste, Tom...foi uma coisa que eu não te vou conseguir perdoar. Tu tens ideia de como me magoas-te?
- Nicky, eu...
- Espera. Ainda não acabei. Eu não te peço que gostes de mim, eu não te peço que fiques comigo. A única coisa que eu exijo de ti é respeito e sinceridade. Se não sentes o que sentias por mim, gostava que me viesses dizer isso na cara. Acabavas comigo, envolvias-te com quem tu querias à vontade. Mas não. Em vez de me dizeres por palavras, agarraste-te a uma gaja qualquer e beijaste-a à minha frente.
- Eu sempre fui sincero contigo e sempre te respeitei.
- Não foi isso que mostraste esta noite, Tom.
- Eu sei. Eu sei que errei. Mas a verdade é que...
- Me traíste.
- Espera. Agora falo eu, Nicky. Eu conheci a Laura há um tempo atrás. Ela é interessante, bonita, querida e isso tudo. Eu gostei imenso de a conhecer, e pensei que estava a começar a gostar dela...e tínhamos discutido, eu estava num estado alterado. Ela é bonita, atraente...eu deixe-me levar. Mas eu não tinha intenção de fazer isso. Tu sabes que eu não te traía. Depois da nossa discussão, eu fiquei fora de mim. Se eu estivesse bem, nada disto tinha acontecido. Quando tu saíste de lá, eu caí em mim. Eu percebi a realidade. Eu amo-te, Ni.
- Eu também te amo, Tom. Mas entende que o que fizeste hoje, magoou-me imenso. Mexeu comigo. Foi como se me tivessem morto.
- Desculpa, Nicky. Tudo o que eu mais quero é ficar contigo, acredita. Aquilo não volta a acontecer.
- Não te posso desculpar assim, Tom.
- Tens de me desculpar! - quase que berrou ele, desesperado, quase a chorar. Parecia que as palavras dele vinham mesmo do coração, mas eu não me podia deixar levar por isso.
As nossas palavras, eram rápidas e umas seguidas das outras.
- Não consigo, Tom. Não agora.
- Mas tens de me desculpar!
- Tom, acabou, eu vou voltar para Portugal!
- Não podes! Eu amo-te, Ni! Eu amo-te!
- Tom, pára!
- Não vou parar se tu te vais embora! Eu preciso de te ter!
- Então porque fizeste aquilo?
- Eu já te expliquei! E repito quantas vezes forem precisas!
- Não precisas de repetir!
- Eu quero ficar contigo!
- Mas assim não dá!
- Mas eu preciso de ti! Eu amo-te, percebes?
- Percebo, mas não te posso desculpar!
- Desculpa-me, Inês! F*da-se!
- Pára, Tom!
- Não vou desistir de ti, Nicky...eu amo-te...
- Eu também te amo...sheisse...
Sem pensar, atirámo-nos para os braços um do outro e os nossos lábios fundiram-se num beijo apaixonante.
Afastei-o de mim.
- Não pode ser, Tom... - disse eu.
Levantei-me da cama e dirigi-me à porta. Ele levantou-se num salto e agarrou-me por um braço.
- Não vás. Por favor - pediu ele.
Beijou-me de novo.
Pouco a pouco, as coisas iam aquecendo. Eu não me queria deixar levar, mas não conseguia resistir. Aquilo que sentia por ele era mais forte que eu. E assim as coisas aconteceram...
Dia seguinte. Acordei. Tom ainda dormia. Despachei-me e comecei a fazer as malas. Ia para casa do Michael até as coisas estarem estáveis, e depois partia para Portugal. Não aguentava aquilo ali.
- Wow, que estás a fazer? - perguntou-me Tom.
- Desculpa, não queria acordar-te. - respondi eu, friamente.
- Não me acordas-te. Mas agora diz-me o que estás a fazer.
- Vou embora, Tom.
- Para onde?
- Para longe de ti.
- O quê? - perguntou Tom. Olhou-me com grande espanto.
- Não aguento mais isto. A tua traição acabou comigo. Eu não posso continuar contigo. Não desta maneira. Tom, volto a dizer o que te disse há dois ou três anos atrás. Eu tinha razão naquela altura. Eu e tu...não dá, Tom. Por mais que me custe, não dá.
- Wow, calma lá! Tu já não gostas de mim?
- Não sejas idiota! Se eu ainda ontem te amava, como querias que hoje já não sentisse nada por ti?
- Pois...
- Não é pois, é mesmo. Tu é que já não sentes o mesmo e assim, as coisas não resultam.
- Mas quem te disse isso?
Tom levantou-se, apressadamente. Ainda estava apenas de boxers.
- Não foi preciso ninguém me dizer, eu vi com os meus próprios olhos.
- Eu já te expliquei tudo. Não me faças repetir.
- Nem te peço tal coisa. Mas agora...simplesmente acabou.
Fechei a mala e desci até ao piso de baixo. Bill e Amy estavam lá. Despedi-me deles e apanhei um táxi.
***À porta de casa***
Bill: Não acredito que deixas-te ir embora a mulher que amas!
Tom: Nem eu acredito, Bill. Mas não tenho escolha.
Amy: Há sempre uma escolha. Tu é que fizeste com que ela perdesse todo o respeito e consideração por ti.
Tom: Obrigado por me lembrares.
Bill: Agradece antes por ela te chamar à realidade, ok?
Tom: Não preciso que me façam isso, tenho os pés bem assentes na terra.
Bill: É normal, estás descalço e no jardim da frente da casa.
Tom: Bill, não é a altura ideal para fazeres piadas.
Bill: Desculpa...
Tom: E agora, que faço?
Bill: Primeiro de tudo, entra dentro de casa. Toma um banho, toma o pequeno-almoço e depois tenta reflectir sobre o assunto. Mas mentaliza-te de uma coisa...podes ter perdido a Ni, talvez para sempre, mano...
Tom: Eu nem quero pensar se é mesmo como dizes...
********************
O táxi movia-se e eu ia embalada nos meus pensamentos e no balançar do veículo, quando se movia.
Muito rapidamente, cheguei ao meu destino. Paguei ao taxista e abandonei o carro. Pousei a minha enorme mala no chão e respirei fundo. Toquei à campaínha. Falei com o Mike pelo intercomunicador e ele abriu-me a porta. Meti-me no elevador e subi até ao terceiro piso, onde ele vivia. Ele acolheu-me como se fosse da família dele.
(...)
Fiquei na casa de Mike algumas semanas, enquanto planeava o meu regresso para Portugal. Podem pensar que não havia nada para planear, mas havia muita coisa. Para além de que na primeira semana não consegui pensar direito em nada. Algumas semanas sem falar com o Tom. Curiosamente, quase todos os dias, vomitava pela manhã. Às vezes a outras horas do dia, mas sempre pela manhã. Estranhei aquilo. Mas não queria pensar muito sobre isso, pois ia embora naquele dia. Mas queria falar com Mike sobre isso. Expliquei-lhe tudo.
- Pois, eu tenho reparado. Podes estar grávida, Ni. - disse-me Mike.
- Não quero pensar nisso, sou muito nova.
- Mas se acontecer, tens de encarar a realidade.
- Sim, eu sei.
- Mas agora tens de tratar disso em Portugal, hoje é o dia em que te vais embora!
- Desculpa, eu sei que te tenho dado trabalho, mas eu vou para um hotel. Eu não saio daqui sem saber se estou grávida do Tom.
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